LAS FILIGRANAS DE PERDER

agosto 09, 2010

Hoje eu vi un beija flor


HOJE EU VI UM BEIJA-FLOR

Márcia Regina de Araujo Duarte

Concurso Mundial de Conto e Poesia Pacifista
Finalista - Conto - Português


Em um bairro residencial/comercial da Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro – RJ - Brasil, sentada no pára-choque de um fusquinha velho, ano 1965, eu tomava sol de manhã. Era inverno. Eu esperava o horário de atendimento na Fisioterapia. Estava com forte gripe cansada de tanto tossir. Deixava meus pulmões ao sol tentando aquecê-los e descontraí-los. Ouvia meditação em meu MP3. Meio deprimida pelo estado de saúde que rendia sem me deixar dormir corretamente eu olhava ao longe, para o nada.

Embora a rua fosse de muito trânsito eu me deixava levar pelas emoções tristes e as lágrimas rolavam em meu rosto enquanto eu tentava adquirir força emocional com a mensagem que ouvia. Pessoas passavam e eu me sentia invisível a elas.

Ao meu lado uma árvore baixa provocava sombra em parte do carro onde eu me sentava. Corria um vento fresco que me acariciava a alma como um amigo que abraça procurando levar conforto.

De repente em meio ao meu ensimesmamento apareceu um beija-flor rodeando as folhas da árvore acima de minha cabeça, que girou tentando acompanhar seu voo rápido. Meus lábios sorriram encantados com sua beleza e agilidade. Suas cores reluziam ao sol. Como num impulso joguei a cabeça para trás e fiquei a olhá-lo ao alto. Ele se comportava como se estivesse à procura de algo, talvez o pólen de alguma flor. Mas não havia flores na árvore.

Sem mais nem menos ele desceu de seu voo até a altura de meu rosto ficando parado a voar no mesmo lugar com suas asas eletrizantes, como só mesmo os beija-flores podem fazer. Ele parecia fitar-me. Começou a dar impulsos para frente e para trás como se quisesse se chegar ainda mais, mas houvesse medo. Eu estatelada, surpresa, não me mexia. Sequer piscava. Só sorria enquanto as lágrimas continuavam a escorrer em meu rosto já numa mistura de antiga tristeza com renovada alegria.

O animalzinho, às vezes muito mais sensível e perspicaz que os Seres Humanos, em seus impulsos de voo começou a tocar meu rosto como se bebesse minhas lágrimas. Eu me sentia bicada, mas não machucada. Tinha uma certeza interna de que mal nenhum ele iria me fazer. Meu coração disparou com a cena que eu vivia como algo magistral e inacreditável. Ninguém passou naquela hora. Nem mesmo carros. Éramos somente nós dois ali embaixo daquela árvore em plena comunhão de energia.

Talvez ele simplesmente tivesse sede e embora lágrimas sejam salgadas e beija-flores gostem de açúcar, minha tristeza naquele momento foi seu néctar. E seu gesto a salvação do meu dia. Eu queria gargalhar, mas sabia que não podia. Qualquer movimento brusco com certeza o afastaria. Foram minutos ou segundos. Não sei dizer, mas pareceu uma eternidade. Como se toda a vida tivesse parado para permitir o total silêncio e isolamento necessário para que aquele encontro acontecesse.

E enquanto acontecia meus pensamentos corriam em minha mente questionando a tristeza que antes sentia: "Que sintonia era aquela? Justamente quando pensava estar longe da "vida", a vida se fez bem diante dos meus olhos."

Depois de algum tempo, talvez já saciado ou salgado, ele se afastou. Ficou novamente parado a minha frente a me fitar e então num vôo absolutamente ligeiro sumiu de meus olhos que continuaram encantados tentando entender a mensagem que a vida queria me passar com aquele acontecimento.

Voltei a minha cabeça para a posição normal e mais uma vez sorri. Em uma rua de poucas árvores, com muito trânsito eu encontrei um beija-flor que me mostrou que até mesmo com a tristeza se faz amor. Em seu silêncio ele cantou a vida para mim. Com minhas lágrimas eu lhe servi e com meu sorriso agradeci o amor que recebi.

Ainda tonta com o acontecido atendi ao celular que tocava já insistentemente. Era meu namorado, que havia se afastado por uns dias com receio de pegar gripe, em vez de me acalentar como aquele belo pássaro o fez de forma tão próxima.

- E aí minha flor? Já acabou com a gripe? Já posso dar beijinho? Vamos sair para dançar hoje ou almoçar, tomar um chope? Já estás boa, não? – ele falava como que impondo que eu já estivesse bem para servir aos seus prazeres.

Fiquei em silêncio por alguns instantes a refletir e em seguida com voz ainda meditativa respondi:

- Meu bem, acho que acabei de lhe trair. Conheci um verdadeiro beija-flor. Ele já me deu muitos beijos sem medo de pegar gripe. Foram beijos suaves, molhados como que sugando gotas de orvalho em uma pétala de flor. Olhando em meus olhos e em silêncio ele me convidou ao amor. Eu apenas sorri e ele me levou a um mundo de prazer que você jamais pode conhecer.

Sinto muito, mas acho que hoje não devo lhe ver. Insensibilidade, egoísmo e egocentrismo são doenças contagiosas também, assim como a gripe. Eu não quero pegá-las de você.

Hoje eu vi um beija-flor... Que me fez ver que realmente sou uma flor!

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